Mecanismo de ação da técnica ainda não é desconhecido; há temor de que ela seja aplicada com uso punitivo
São Paulo - Era manhã de segunda-feira e a dona de casa Palmira de Souza, de 69 anos, detalhava, animada, seus planos para a semana.
— Na quarta, eu ia voltar para a hidroginástica, mas desisti. No domingo fui à igreja, encontrar meus amigos. Foi ótimo, porque sou muito católica — disse, enquanto esperava sua vez de ser atendida no serviço de eletroconvulsoterapia do Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo.
Para Palmira, essas atividades cotidianas tinham se tornado pequenas conquistas. Nos últimos dois anos, a dona de casa enfrentara uma depressão severa, para a qual os medicamentos não surtiram efeitos, e que culminara num período de internação.
A eletroconvulsoterapia (ECT) — antigamente conhecida como tratamento de eletrochoque — foi a alternativa encontrada pelos médicos para tratar de uma paciente que não dava sinais de melhora. A técnica consiste em usar uma corrente elétrica que percorre o cérebro para induzir uma convulsão. Naquela manhã, Palmira faria sua 15ª sessão. Esperava que fosse a última.
Polêmica desde a sua criação — ainda hoje é associada a maus tratos e situações de tortura —, a ECT voltou ao centro do debate sobre saúde mental no Brasil em fevereiro, quando uma nota técnica do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde afirmou que a pasta deveria disponibilizar “o melhor aparato terapêutico para a população. Como exemplo, a eletroconvulsoterapia (ECT)”.
Para muitos, a afirmação soou como uma disposição do governo em apoiar a expansão do tratamento, um ponto controverso. A ideia causa estranhamento mesmo entre alguns defensores da técnica.
— Não há como expandir demais. Esse é um serviço caro, e que exige o trabalho de uma equipe multiprofissional — explica o psiquiatra Sérgio Rigonatti, que coordena o serviço do HC de São Paulo.
A ECT foi criada na Itália nos anos 1930, pelo médico Ugo Cerletti. Ele percebeu, ao tratar de um rapaz com esquizofrenia, que a convulsão provocada pela eletricidade melhorava o quadro de saúde do paciente. A técnica foi importada para o Brasil na década seguinte. À época, era aplicada sem anestesia, e podia ser brutal: há relatos de pacientes que sofreram fraturas, decorrentes de convulsões violentas.
— Nos grandes hospitais psiquiátricos brasileiros, a ECT foi usada em pessoas sem indicação para o tratamento, como forma de aquietar pacientes mais agitados — destaca o professor Paulo Amarante, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que teme que a técnica seja usada para controle e punição. — Não há como controlar a frequência de uso da máquina, nem a forma como será empregada.
O desenvolvimento de antipsicóticos e antidepressivos eficientes fez sua popularidade cair. Ao longo dos anos, a técnica se modernizou. Desde 2002, a terapia é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina, e só pode ser aplicada sob o efeito de anestesia e em situações específicas, como no caso de depressão refratária a medicamentos e catatonia. É também indicada para alguns casos de gestantes que sofrem com depressão, já que certos antidepressivos podem prejudicar o desenvolvimento da criança.
Cada sessão de eletrochoque dura cerca de uma hora. A corrente elétrica é aplicada através de eletrodos postos em contato com o crânio da pessoa por um período em torno de 30 e 45 segundos. Adormecido, o paciente não esboça reação. O custo de uma sessão pode chegar a R$ 1 mil.
Vaia superada
Segundo Rigonatti, a imagem ruim da ECT vem desaparecendo. Ele próprio já chegou a ser vaiado durante um congresso de saúde mental:
— Hoje, mais profissionais recorrem ao tratamento, e o número de pacientes cresce constantemente, embora de forma lenta.
O mecanismo de ação da ECT, no entanto, continua desconhecido. Os cientistas acreditam que a corrente elétrica promove uma espécie de reativação dos neurônios em algumas regiões do cérebro. A inatividade dessas células pode estar associada à depressão.
— Durante a doença, pode acontecer a atrofia de algumas regiões do cérebro. A ECT atua na modulação da atividade neuronal. A ideia é fazer o sistema nervoso voltar a funcionar normalmente — explica o psiquiatra Diego Tavares, especialista nas chamadas terapias de neuromodulação, grupo do qual a eletroconvulsoterapia faz parte.
Procurado pelo GLOBO, o Ministério da Saúde ressaltou que a ECT não faz parte dos procedimentos cobertos pelo SUS, embora financie a compra de aparelhos.
Anteriormente, já dissera que a nota técnica era um documento interno, e que os assuntos ali abordados estão em discussão pela pasta.
Fonte: O Globo Data: 11/03/2019
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